Poetriceria V - Falar



- Dr. Fernandes, repare, eu nunca me revelo a ninguém. Nunca! O que acaba de escutar é único, inédito e mais ninguém saberá, por mim, claro.

- Sabe que também não direi nada. É um dever que tenciono cumprir. - Falou com calma. Fumava. Bebia. Este não era um médico normal...

Esteve 2 minutos a percorrer os sofás e o tecto da sala, abespinhando-se de sobremaneira com as sombras que o fogo da lareira lá produzia. A dada altura percebi que não era só por isso. Senti-o como sinto quando as lágrimas estão para chegar. Por fim, inspirou, recostou-se no sofá, bebou um gole do seu gin e disse-me com aspereza:

- Sabe que faz mal e que isso o está a matar por dentro? Imagina a quantidade de sofrimento de que abdicaria? Descarregue em Deus... Nos amigos... Nas putas ou onde quiser, mas precisa de falar! Fale comigo mas não de ano a ano! Fale! Fale!

Terminou o sermão a arfar. E, como se de água se tratasse, engoliu o restante tónico que o fazia falar do que não queria.

- Sabe Dr., agradeço o seu conselho. Milhares já mo deram, uns aos gritos e outros com uma rispidez disfarçada de bondade e suavidade. EU SOU! Não me rebaixo a esse ponto... Acho que estas conversas estão a tornar-se inúteis... É que já nem consigo eu consigo falar e expor o que penso e sinto. Tudo o que me ouviu hoje dizer foi mentira... Ou melhor, foi programado e pensado. Vesti uma máscara que não é a minha. O mais interessante é que ninguém sabe que eu quando digo "sim" isso pode querer dizer: "sim", "não", "talvez", "deves pensar", "penso que sim", "penso que não", "odeio", ... - de repente parei. O Dr. Fernandes olhava-me com um ar incrédulo e extenuante.

Peguei na mala, nos livros e fui-me embora.

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